Ivo Pitanguy, imortal em seus méritos e na vida realizada, cercado pela família: o caçula Bernardo, artista plástico e músico, Gisela, médica, Marilu, sua mulher e notável companheira, atualmente adoentada, Ivinho, empresário dos esportes, Helcius, empresário internacional
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Não foi uma despedida usual. Foi missa respeitosa, compenetrada, contrita. A igreja Nossa Senhora do Carmo, na hora mais crítica do rush, no Centro da Cidade, lotada, superlotada. Homens vestiam preto. O luto era profundo. O luto clamava.
Já Elas se preocuparam em expor a dor no máximo de sua beleza, como se dessa forma também prestassem reverência. Das meias escuras aos sapatos de salto, bolsas, cabelos, maquiagem pouca, tailleurs bem cortados. Elas poderiam perfeitamente estar na missa famosa da Igreja de São Roque, em Paris, exéquias de Yves Saint-Laurent, outro artífice do belo. Mas, não, Elas pranteavam outro mestre escultor, não de panos, porém de tecidos vivos, revolucionário das ciências, promotor de magníficos resgates transformadores, salvador de vidas, que estariam destruídas por deformações irremediáveis, não fosse seu criativo e inspirado bisturi.
O oficiante, na homilia, descreveu a ação missionária do professor médico e imortal das letras Ivo Pitanguy, que se distinguiu na medicina de reconstrução, sem menosprezar a importância de cultivar a beleza em todos os aspectos da vida. O estético e o ético. O material e o abstrato. Foi um escultor de belezas e um cultor de palavras. Comunicou-se através de todas as formas de arte. A literatura, a pintura, a escultura, a música, as artes cênicas. Todas as expressões o atraíram, e ele trafegou nesses mundos com a mesma intensidade com que se aprofundou nas ciências. Não foi homem de superficialidades. Todas as vezes em que conversou, escutou. Quando falou, disse. Nos esportes – natação, jiu-jitsu, mergulho em profundidade, correu os riscos. Era de seu temperamento.
Os amigos foram os de fato e para sempre. Não discriminou pela condição social. Selecionou pelo nível de interesse humano que as pessoas lhe despertavam, suas peculiaridades, atrativos, méritos.
Por tudo isso, a densidade daqueles momentos na Igreja do Carmo, em que cabeças não se viravam, sequer um mínimo ruído se ouvia, nem mesmo respiração mais acelerada.
Após o ofício religioso, falou a irmã, socióloga Jacqueline Pitanguy, feminista ilustre, defensora dos direitos da mulher. Ela destacou as incontáveis e singulares qualidades humanas do irmão. Em seguida, o filho mais velho, Ivinho, enfatizou a forte ligação com o pai, estabelecida através dos esportes, desde criança, identificação mantida até o último dia da vida de Ivo. O terceiro a falar foi Helcius, filho do meio. Firme, lembrou o vínculo intenso de companheirismo, as viagens, sempre juntos, pelo mundo afora, as aventuras e conquistas vividas, o alto mundo, os desafios, o aprendizado, as lições de vida recebidas, a imensa saudade já agora sentida. Foi muito bonito ouvir o Helcius.
Os próximos foram os netos. Micael, muito comovido, filho de Ivinho, e Antonio Paulo, que segue a carreira de Ivo, filho de Gisela Pitanguy Chamma e de Paulo Müller, também cirurgião plástico. Antonio Paulo impressionou pela semelhança com o avô, no físico, na firmeza e na verbalização de suas ideias. A filha médica, Gisela, encerrou as falas, revelando a intensa simbiose com o pai através da literatura. Os versos que ele dizia, sempre os mesmos, ao chegar em casa. Os poemas que gostava de recitar. Ele iniciava, ela concluía, e vice-versa. E lhe dedicou dois poemas do avô poeta. Faustino Nascimento era um helenista, cuja casa na Lagoa guardava estilo grego, com colunas e capitéis dóricos. A casa grega de Faustino e Stael, pais de Marilu, deu lugar a um prédio, com um apartamento para cada neto.
O filho caçula, Bernardo, na primeira fila, coração engasgado, não conseguiu contornar a emoção.
Durante a missa, a voz da soprano Juliana Sucupira inspirou divindades, preenchendo os florões, volutas, colunas barrocas torneadas, e me fez adivinhar lindíssimas Valkyrias refugiadas por trás das talhas de ouro da Nave da igreja do Carmo, à espreita do espírito imortal do mestre Ivo para – privilégio dos heróis guerreiros – após a cerimônia, conduzi-lo ao ‘salão dos mortos’, com 540 portas, entretê-lo com sua beleza, servir-lhe hidromel, tecer-lhe redes.
Contrariando a mitologia nórdica, tais cuidados não seriam para nosso guerreiro mineiro lutar a batalha do fim do mundo ao lado de Odin, mas para levá-lo ao país cantado por Charles de Baudelaire, “onde tudo é beleza e harmonia / luxo, sensualidade e calmaria”, e onde possivelmente receberá no futuro as melhores companhias…
Afinal, Ivo, guerreiro, merece!
Escutem seu convite, tomado emprestado de Baudelaire, numa livre tradução minha e mínima adaptação do poema…
Convite à Viagem – l’invitation au voyage
“Marilu, meus filhos, minha irmã,
Pensem na magia
De juntos ir para lá viver
De se esbaldar de tanto amar,
Amar e morrer,
No país com a sua fisionomia;
Os sóis cobertos do orvalho
Dos céus nublados,
Para mim guardam o encanto
De teu olhar fiel
Do qual eu sou réu
Brilhando através do pranto.
Lá, tudo é beleza e harmonia
Luxo, sensualidade e calmaria
Os móveis luzem,
Polidos pelo tempo,
Decorando nosso quarto;
As mais raras flores
Misturam seus odores,
Há um leve aroma de âmbar.
Os tetos opulentos
Os espelhos infinitos
O esplendor oriental,
Tudo ali sussurraria à alma,
Em calma,
Em seu próprio idioma natal.
Lá, tudo é beleza e harmonia,
Luxo, sensualidade e calmaria,
Vê os navios indolentes nos canais,
Repousando no cais.
Eles vêm do fim do mundo
Satisfazer vossos caprichos ideais.
Os sóis se deitam,
Cobrindo os campos,
A cidade inteira, os canais,
De jacinto e de ouro.
O mundo adormece
Nesta cálida luz, se aquece.
Lá, tudo é beleza e harmonia
Luxo, sensualidade e calmaria“
(Charles Baudelaire – com mínimas e livres adaptações da colunista)
Ivo Pitanguy, antes de fazer seu último grande mergulho para sua dernier voyage