Uma Furtiva Lágrima, o livro de Nélida Piñon

Uma Furtiva Lágrima, o livro de Nélida Piñon, é para se ir sublinhando a lápis, uma a uma, as passagens de retorno obrigatório. Seu precioso Estatuto do Amor é um libelo na defesa da mulher e na louvação ao amor – segundo ela “o melhor gesto na terra”. Escolho um parágrafo: “Esfrega as costas da mulher com a espuma do amor. Cuida para que a pele da companheira não se fira jamais por força da tua impaciência, desatenção. Vigia, atento, a tua violência. Ela é a parte obscura e sórdida da tua alma.”

A lágrima furtiva brotou como um exercício de entrega da escritora, deixando-se sucumbir “sem protesto”, depois de ouvir do oncologista a sentença de apenas mais três meses para viver.

Dando conhecimento do fato a poucos amigos, Nélida se recolheu em casa ao longo de meses para iniciar seu “Diário de morte”, acompanhada apenas do cão, Gravetinho, que, segundo diz, percebeu sua “vulnerabilidade”, e da cadelinha, Suzy.

Mas a morte não a inspira, e Nélida evita “traços poéticos e salpicos metafóricos”, enquanto enfileira palavras, encadeia sentimentos e frases, com o auxílio de uma companheira desde a infância: a imaginação.

Deixa-se levar a Nélida pelo imaginar, “negando as versões oficiais”, dourando a vida, embelezando até “os Campos Elísios”, em eventuais visões noturnas, o que não deve ser difícil para quem tem ao alcance da janela a mais bela das lagoas, a Rodrigo de Freitas. Isso ela nos conta no capítulo Estrelas e Quimeras.

A autora, que prega que “nada (em seu ofício) deve ser esquecido, deixado ao relento”, é integralmente fiel a tal princípio. De mãos dadas com o leitor, certa de sua discrição, segue Nélida, página por página, generosa, confiante em suas afinidades. Reveladora, ela se desdobra aos olhos de quem a lê, despetalando experiências, sentimentos, emoções. Testemunhar suas vulnerabilidades, junto com Suzy e Gravetinho, é o grande prêmio que a escritora nos confere nesse livro, em que faz “o melhor gesto da terra”: Nélida ama.

Nélida Pinon no lançamento de seu livro, ao lado do embaixador Marcos Azambuja, seu confrade na Academia Brasileira de Arte  Com Dalal Achcar

Com Aparecida Marinho, autografando Uma Lágrima Furtiva, que, segundo a coluna de Ancelmo de Góes, bateu recorde de vendas na primeira semana, deixando para trás até os mais bem vendidos livros de auto-ajuda do momento

Com a embaixatriz Laís Gouthier

Nélida e Paulo Henrique Cardoso

Sonia Machado, da Editora Record, uma entre os muitos donos de editoras presentes. O comentário era de que as apoteóticas noites de autógrafo de Nélida são únicas.

Com o professor Carlos Alberto Serpa

Com Luiz Carlos Ritter, que também foi anfitrião da noite, fazendo jorrar o bom champagne Taittinger, buffet de Adriana Mattar, decoração de Leo Araújo, cerimonial Stambowski

Com Antonio Rodrigues dos Santos, namoro de sua juventude, e Fernanda Basto

Ladeada  por Roberto Halbouti e Paulo Arguelles

O advogado Sérgio Bermudes, a juíza escritora  Andréa Pachá e o jornalista Roberto D’Ávila

Laura e Cícero Sandroni, companheiro de Nélida na Academia de Letras, enfrentaram a longa fila, que se estendeu desde as seis da tarde até 11 da noite

Com o escritor Victorino Chermont de Miranda, secretário-geral da Academia Brasileira de Arte, emoldurados pelas flores de papel crepon de Flavia Carrano que decoraram a livraria da Travessa Leblon, no lançamento trepidante, desde a entrada

Carlos Andreazza, editor do livro, rindo e não era à toa

Fernanda Montenegro e Fernanda Basto

Domício e Rejane Proença

Karla Vasconcellos, Suzy e Cora Rónai

Os imortais

Fotos de Marco Rodrigues

A CASA ZUZU ANGEL E A COLEÇÃO CARMEN MAYRINK VEIGA

Palestra realizada por esta jornalista, por ocasião do II Seminário Moda Uma Abordagem Museológica, realizado pela Casa de Rui Barbosa e o Instituto Zuzu Angel, no dia 23 de maio de 2019

O acervo da Casa Zuzu Angel se divide em cinco grupos:

1 – A Coleção Zuzu Angel, da criadora pioneira em suas propostas da moda com brasilidade e da moda como instrumento de denúncia e protesto político.

Grupo 2 – Mosaico da Vida Brasileira, que reúne várias peças, de criadores brasileiros e estrangeiros, usadas por diferentes personalidades, de setores e extratos sociais diversos, abrangendo dos anos 40 aos dias de hoje. Aí temos vestuário desde as Cantoras do Rádio, Marlene, Emilinha, a Cauby Peixoto, a Adelaide Chiozzo do acordeon, ao velho guerreiro Chacrinha, roupas do vice-presidente José Alencar, das meias de fio metalizado de dona Neusa Brizola ao smoking de posse de Ivo Pitanguy na Academia Nacional de Medicina.

3 – Grupo de marcas e criadores brasileiros, com as coleções de Isabela Capeto, Glorinha Paranaguá, Luís de Freitas, Marco Ricca, Lucília Lopes, Heckel Verri, Glorinha Pires Rebello, Guilherme Guimarães, José Ronaldo, Moda Rio etc.

4 – Os Colunáveis, no qual se destacam Coleção Monteiro de Carvalho, Coleção Paulo Fernando Marcondes Ferraz, Coleção Tereza Chateaubriand Alkmin, Coleção Severiano Ribeiro, Coleção Martha Rocha, Coleção Ibrahim Sued, a estrela deste grupo é a Coleção Carmen Therezinha Solbiati Mayrink Veiga, que vamos focalizar.

Iniciamos o acervo que hoje ocupa a Casa quando vimos a necessidade de resgatar as criações de Zuzu Angel ainda existentes e reuni-las numa Coleção, preservando a obra que julgamos importante, assim como a coletividade da moda também a considera. Essa ação de garimpo nos levou à percepção da pouca ou nenhuma importância atribuída à moda no Brasil àquela época, primórdios dos anos 90, quando não era vista como expressão de arte e bem cultural… e hoje começa a ser. Começa.

Verdadeiras preciosidades se perdiam nos brechós e nas reformas domésticas singelas, que descaracterizavam a criação, para seu reaproveitamento por outras pessoas ou sua adequação aos padrões de cada época, quando as roupas eram ora curtas ora longas, ora largas ora estreitas, ora fechadas ora decotadas, motivando infinitas adaptações.

Assim, nesse processo de garimpo das peças de Zuzu, produzidas desde a década de 50, percebemos a necessidade de captar e preservar também a obra de outros artistas brasileiros.

Nesse processo, passamos a receber também doações de peças de alta costura e de pret-à-porter de importantes marcas estrangeiras, como Christian Dior, Balenciaga, Pierre Cardin. Culminando com a fantástica doação de Carmen Mayrink Veiga, até a aquisição de um vestido de baile da princesa obra da inglesa Catherine Walker, sua preferida para roupas de gala.

Nossa responsabilidade tornou-se maior, e nossa necessidade de espaço também. Por diversas vezes tentamos parcerias com o poder público na busca de um imóvel para o Museu da Moda. Foram acordos, negociações, promessas e decepções, em vários níveis governamentais, desde os anos 90.

Até que decidimos, há quatro anos, ceder uma casa pertencente à família de Zuzu Angel, isto é, de minha propriedade, uma residência apalacetada que data do século 19, na Usina da Tijuca, e lá estabelecemos a Casa Zuzu Angel, numa parceria inicial de um ano com o Banco Itaú e a Light.

Tal parceria nos possibilitou colocar no ar o Portal da Coleção Zuzu Angel, montar quatro reservas técnicas, sendo três reservas têxteis e uma reserva documental, e realizar a conservação da Coleção Zuzu Angel. Tudo de acordo com padrões museológicos internacionais, controle de umidade, temperatura, iluminação, fungos, isolamento contra insetos.

Os trabalhos hoje se expandem pela casa inteira. Temos três salas de exposição, uma sala reservada para a remontagem do quarto de Zuzu Angel, duas salas de conservação, biblioteca, além de três outras salas de guarda de acervo têxtil, chamadas de Salas de Quarentena. É onde vem sendo feito um inventário minucioso de todas as peças ainda não catalogadas, que, devido ao nosso desconhecimento inicial, obedeceram a diferentes métodos de organização ou à ausência de métodos, o que enfim conseguimos normatizar.

Temos um cronograma a cumprir de seis meses, para deixar todo o acervo de cerca de seis mil peças em ordem. Para isso contamos agora com o museólogo Rubens Ramos, nosso colaborador de primeira hora, que como bom filho à casa retorna depois de um período no Museu da Imagem e do Som de São Paulo.

Começamos aprendendo e continuamos a aprender. Nossa primeira providência foi estabelecer uma parceria com o Musée de La Mode, Palais Galliera, em Paris, onde tivemos uma arquiteta estagiando, pelo período de oito meses, enviada por nós, com auxílio do Consulado da França no Rio e apoio da Air France. Como consequência, a arquiteta Paula Kierulf produziu um dossiê precioso, bem ilustrado e detalhado, que auxiliou a arquiteta Luisa Bogossian no processo de adaptação dos espaços, na montagem de nossas reservas técnicas e na aquisição de materiais. Para isso, contou a criatividade e o espírito de improviso dos profissionais do Estúdio Guanabara, adaptando mesas de conservação, recriando luminárias e arquivos, atendendo aos nossos recursos sempre limitados. Hoje providos pessoalmente por mim – pessoa física.

A Coleção Carmen Mayrink Veiga foi outro desafio enfrentado por nossa conservadora Manon Salles, e é comovente ver o que ela conseguiu realizar com suas assistentes, e posteriormente com as estagiárias da Unirio e da UFRJ.

A Coleção Carmen Mayrink Veiga é preciosa, pois reflete a profunda sensibilidade para a alta moda e o bom gosto da consumidora e colecionadora, o que é reconhecido inclusive internacionalmente, tendo sido incluída no Hall of Fame da Eleição das Mais Bem Vestidas do Mundo, que anualmente podemos conferir na revista norte americana Vanity Fair.

São quase 200 roupas cuidadosamente escolhidas e pinçadas por ela, que relata em manuscritos a história de cada peça. Isso pudemos conferir por ocasião da Exposição Carmen Mayrink Veiga, que ocupou todos os espaços da Casa Julieta de Serpa, no ano de sua fundação, em 2003.

Com uma linda direção de arte do cenógrafo Colmar Diniz e nossa concepção e curadoria, a exposição de moda abrangeu as várias faces de Carmen, suas coleções de arte, seus álbuns de festas, suas joias, as viagens, sua presença na mídia.

Havia uma sala particularmente original, que era o Instituto Médico Legal da Moda. Toda branca, simulando azulejos, a sala era um laboratório de pesquisa, onde, numa grande mesa, repousavam tailleurs e vestidos preciosos da colecionadora Carmen, de modelagem elaborada, todos de alta costura. Eles eram virados pelo avesso, para que os visitantes tivessem um acesso único aos “bastidores” da roupa e fizessem sua autópsia. Para que conhecessem segredos e truques, praticamente inacessíveis aos comuns mortais, da alta moda, em que os preços podem alcançar centenas de milhares de dólares.

Eram fornecidas a todos luvas para manipulação das peças, e em alguns casos pinças.

Tivemos a alegria de alguns anos depois ver uma exposição no Victoria and Albert Museum, em Londres, repetir essa ideia, relatada por nós a um dos diretores daquele museu quando esteve no Rio de Janeiro.

Nossa caminhada nos fez ver que, para lidar com um acervo de moda, não basta deter os conhecimentos teórico de catalogação, conservação, restauração, acessíveis em poucos cursos de escolas brasileiras.

Não basta sequer o dinheiro, que sempre nos falta. É preciso dominar um saber que só um centro de pesquisa, como é a Casa Zuzu Angel, pode proporcionar, e sob a orientação daqueles que viveram o universo dos grandes ateliês de alta costura.

É o conhecimento de um perito da moda que permite identificar, a partir de sua prática acumulada, com um único olhar, um toque, a idade da peça, sua origem, seu criador. Poucos são os que reconhecem um forro de benberg, tecido usualmente utilizado para isso nas décadas de 50 e 60, um fecho éclair Corrente de metal e algodão e não os de silicone, a partir da década de 70. Os ganchos forrados de seda ou com linha. As bretelles, que impedem a roupa de correr nos ombros. Uma bainha feita à mão ou à máquina, alinhada ou torta. Uma costura reta ou franzida. Botões de osso, madrepérola, baquelita ou plástico. Identificar um plissado montado a mão, milimetricamente, preguinha por preguinha. As contas de cristal de um bordado, e a delicadeza dos pontos minúsculos à mão. Identificar o criador pelo estilo, o corte da roupa, a estrutura da forma.

Essas pessoas são os antigos profissionais, as antigas consumidoras que amam a moda, criaturas como eu, que desde criança perambulei entre alfinetes e fiapos das oficinas de costura de minha mãe ou especialistas internacionais convidados para participar, transferindo conhecimento e tecnologia nos vários saberes que envolvem um acervo de moda.

Conhecimentos que, em nosso país, se tornam preciosos, se pretendermos levar avante o projeto de preservar as obras de arte da moda.

A criação do Instituto Zuzu Angel e da Casa Zuzu Angel é uma longa e até penosa trajetória, que se destinou a fazer uma convergência dessa experiência a outros profissionais, e juntos estamos construindo, acredito, um novo momento para a memória da moda no Brasil.

A Casa Zuzu Angel, além de ser depositária, preservadora e expositora de moda, tem a missão de servir de laboratório de pesquisa e de educação continuada.

Além dos brasileiros, reunimos criações dos estrangeiros renomados. Do tempo em que a moda não era fast fashion descartável, desatenta à qualidade e aos detalhes. Era uma slow fashion, produzida com vagar, cada peça exigindo pelo menos três ou quatro provas, quando não se tratava de um vestido do saudoso Jerson, o brasileiro rei dos drapeados, que obrigava a clientela a pelo menos 7 a 8 provas diante do espelho.

Moda praticamente perene, master pieces dignos de museus, legados para a história.

Assim é a Coleção Carmen Mayrink Veiga, onde pontificam o que de melhor produziram Valentino, Saint Laurent, Givenchy, Ungaro, Mme. Grès e outros preferidos dela.

A poesia de Chico Buarque às claras, sem voz nem melodia, com lupa, luvas, uma radiografia

Abaixo transcrevo o prefácio que escrevi para o livro Quem É Essa Mulher – A Alteridade Do Feminino na Obra Musical de Chico Buarque de Holanda,do pesquisador Alberto Lima, sua dissertação de mestrado feito na Sorbonne, publicado em 2017 pela Companhia Editora de Pernambuco.

PREFÁCIO – E Chico criou a Mulher

Hildegard Angel

Do entusiasmo ao encantamento. Da revelação à euforia. A leitura de Quem É Essa Mulher – A Alteridade Do Feminino Na Obra Musical de Chico Buarque de Holanda inspira um jorrar de sentimentos intensos e múltiplos, o que não seria de se esperar de um texto acadêmico, mesmo sendo ele merecedor de honrosa menção na conclusão do mestrado do autor na Université Paris III, Sorbonne Nouvelle.

Imagino que o très bien da menção concedida tenha sido com o mesmo ânimo com que agora me debruço para escrever a respeito. Inicialmente o autor Alberto Lima, cuidadosamente e por várias fontes e caminhos, nos insere nos diversos cenários que levaram a mulher até onde hoje está. Acompanhamos, no anoitecer de 13 Brumário Ano II, em seu cárcere na Conciergerie, Olympe de Gouges, precursora dos sonhos igualitários femininos, ouvir sentença de pena de morte pelo Tribunal Revolucionário e depois seguir engaiolada pelas ruas escuras de Paris até o cadafalso, onde entregou sua cabeça brilhante, corajosa, especial, à guilhotina, cumprindo ironicamente o Artigo X de sua própria Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã: “Uma mulher tem o direito de subir ao cadafalso. Ela deve, igualmente, ter o direito de subir numa tribuna”. Seus textos libertários desagradaram aos jacobinos, naquele momento dando as cartas na França revolucionária. O ruído do baque da guilhotina abafou suas últimas palavras: “Filhos da Pátria, vocês vingarão minha morte!”.

Olympe mereceu lâmina afiada porque “abandonou os cuidados do lar, quis fazer política, instituiu sociedades de mulheres”. Foi por isso chamada na sentença de “virago”, “impudente” e “mulher-homem”. Era 1793.

O autor nos leva mais longe, aos anos 300 AC, na Grécia de Aristóteles, quando “cidadão” era palavra sem feminino, a honra da mulher era um modesto silêncio e a força da mulher consistia em vencer a dificuldade de obedecer. Apresenta a mulher do Período Romano mais senhora de si, coproprietária dos bens do marido, dirigindo educação dos filhos, comandando escravos, indo às festas e ao teatro, alegria que durou pouco, até a reação masculina, com a criação de uma lei em que a mulher passou a ser disposta como um bem pelo marido e o pai, e o Estado a privá-la de quase toda a capacidade civil.

A popularização da Bíblia, com a invenção de Guttenberg, trata de jogar por terra qualquer bom conceito que se pudesse ter sobre a mulher, essa melíflua, que induz Adão a comer o fruto proibido. Com isso, Eva tem como castigo as dores do parto e a sina de sempre desejar o marido e ser dominada por ele por todos os tempos. E segue a mulher eternamente maldita, até nos vocábulos que exprimem sua fisiologia, com os franceses chamando gravidez, parto, aleitamento e menopausa de malédiction.

Com a Inquisição, bruxas são as mulheres, personificação de Satanás. Período de trevas em que mulheres sequer tinham instrução, e só em 1592, enfim, fiat lux, abre-se nesga clara para elas, com o registro da primeira aparição num palco de uma mulher. No Renascimento, nasce a mulher influente na Corte francesa, para incômodo de Montesquieu expresso em palavras. No século 17, a ascensão da burguesia revela mulheres na literatura. Vem a Revolução Industrial e o uso da força masculina perde lugar para a máquina, sendo requisitada também a habilidade manual feminina. As mulheres são submetidas à opressão daquele capitalismo emergente, trabalhando em locais insalubres, sem hora para começar, terminar ou descansar, subnutridas, sub-remuneradas, em condições de miserabilidade e ainda com casa e filhos para cuidar. Essa panela cheia de revoltas e reivindicações negadas alcança o ponto de fervura máxima em 1857, num 8 de março, quando 129 operárias são carbonizadas dentro de fábrica em Nova York, retaliação dos patrões e da polícia contra uma greve delas. Data jamais esquecida, é o Dia Internacional da Mulher, motivador de infindáveis ações e movimentos pelos direitos das mulheres, desde sempre e para sempre.

Bem, vieram as conquistas, ralas, mas reais. Vieram as sufragistas, veio o voto, veio Simone de Beauvoir, num alvorecer de ideias, sacolejando as mentes femininas em despertar luminoso. Veio o conceito de gênero construído por mulheres, uma antropóloga e uma historiadora, e, nos anos 90, detonado por outra mulher, filósofa – todas elas ilustres. Reanálises, reavaliações, re-opiniões, entre barrancos e trancos, a mulher desembarca no século XXI ainda por se resolver, por se situar, por se fazer perdoada pelos estigmas que milenarmente lhe pesam, de leviana, infiel, mistificadora, traiçoeira, interesseira, devassa, pecadora, insubordinada, inconfiável, desde Eva, desde Aristóteles, desde a Inquisição, desde Montesquieu, desde os Jacobinos, desde as sufragistas – a mulher permanece a Deus dará.

E onde entra nisso tudo o Chico? É aquele que não se basta a cumprir, junto à sociedade, seu papel de artista difusor de valores. Vai muito além. Assim como seu personagem em Teresinha, chegou sorrateiro, avassalador e, antes que percebêssemos, instalou-se, posseiro, em nossas mentes, vidas, reuniões, fossas (ele é desse tempo), retomadas, decisões. Reinventou-nos mulheres. Ligou a luz. Alimentou a fogueira. Acendeu o lampião. Acalentou fantasias, despertou tesões, aliviou tensões. Compôs 190 canções poemas tendo a mulher como inspiração. Foi menino filho da gente, frágil como nós, outrou-se em nós (e aprendi que outrar é invenção de Pessoa, o Único), e nós nos outramos nele.

Também outra-se o autor Alberto Lima. O escritor se outra em Chico Buarque de Holanda e nas mulheres brasileiras, que, a partir dessa obra, têm a oportunidade de se verem inteiras, pelos olhos verdes do Chico, pelos olhos da perversidade dos conquistadores salteadores, que se apossaram do Brasil, pelos ingênuos olhos das índias, possuídas e violentadas, pelos olhos tristes das africanas, sacrificadas, coisificadas, pelo olhar mortiço das brancas despersonalizadas.

Conhecer as mulheres de Chico através da visão analítica de Alberto é redescobri-las. Despidas de sua melodia, nuas da voz do artista e das vozes de outros artistas, elas nos aparecem em sua inteireza, com seus petits signes de beauté mais recônditos, as estrias mais discretas, os pneuzinhos indisfarçáveis. Tudo à mostra. Perfeições e imperfeições. Ler este livro é sair dele certa de que separar o artista da obra é uma tremenda tolice.

O livro de Alberto Lima não deverá esquentar prateleira.

E minha alma lavada por perceber que, entre esses 190, há dois poemas canções in memoriam de Zuzu Angel, que se outrou mãe de todas as outras, não só de mim.

 

Fog londrino e carinho sem ter fim, no casamento de Paula e Fábio

Margot Pitombo tem três grandes amores: Paulinha, a filha única, Volney Pitombo, o marido único, e a Inglaterra, um país único. Na Grã-Bretanha, Margot estudou, fez amizades para toda a vida e assimilou forte influência cultural, que a inspira em todos os seus momentos. Da decoração de suas residências à clínica de Pitombo, ao estilo de vestir, tudo em Margot é very british. Daí que, mesmo quando se dispõe a fazer um casamento campestre para a filha, os convidados se sentem no campo… na Inglaterra.

Algumas convidadas atenderam ao pedido de Margot para ir de chapéu, e lá estavam elas, com seus chapéus e fascinators, na Igrejinha de Nossa Senhora da Conceição. De fato uma capela singela, de 1897, que Margot se deu ao trabalho de pintar de branco e cinza azulado, e contou com a ajuda de um artista inglês radicado naquela região de Secretário, para realizar os afrescos e assessorá-la no décor da igreja.

Os nichos dos santos e o teto ganharam sancas, o piso do altar foi coberto de granito, a parede de fundo revestida de pedra. Todas as madrinhas se vestiram da mesma cor lilás, com o mesmo tecido, como vemos fazerem as jovens bridesmaids nos casamentos ingleses. Os padrinhos, de cinza e flor branca na lapela, assim como o pai da noiva, o cirurgião plástico Volney Pitombo, num terno jaquetão de abotoamento duplo, com botões brancos, totalmente country suit.

Margot, além de trazer de Londres o tecido azul hortênsia de seu vestido, encomendou uma réplica de um broche de pérolas e brilhantes da rainha Elizabeth II, que já foi usado pela Rainha-Mãe, Mary, e originalmente pertenceu à rainha Vitoria. Coube à joalheira Adriana Quattroni fazer a reprodução idêntica. Quanto ao look, parecia ter sido inspirado no de Meghan Markle, a duquesa de Sussex, em seu primeiro compromisso oficial depois de casada. Confiram abaixo:

Foi um sábado de fog londrino. Com ameaça de chuva forte. Marcada para as duas da tarde, a cerimônia só começou depois das três. O que deu tempo a quem estava na igreja para observar cada detalhe da mãe de noiva caprichosa. Os arranjos de flores brancas em grandes vasos neo-clássicos, a estonteante Angelita Feijó, sentada na primeira fila, com o marido e a filha, daminha, que anunciava que iria levar as alianças; Inah Arruda e a joalheira  Adriana Quattroni, na segunda fila do lado oposto; o oftalmologista-escritor Almir Ghiaroni e Georgia Wortmann, levando um xale de pele nas mãos e com um fascinator nos cabelos presos.

O otorrinolaringologista imortal da Academia, Jair de Castro, com Tília. A médica Gisela Pitanguy, chegando pontual com Raul Chamma. Márcia Duvivvier, também pontualíssima, mas sem Eduardinho, que ficou gripado em casa, e enviava mensagens pelo zap para saber como iam as coisas. Dora Cortez, Karmita Medeiros, a empresária mineira Virgínia Bartolomeo.

Médicos, ainda, os cirurgiões plásticos Rawlson de Thuin, Luiz Haroldo Pereira e Claudio Cardoso de Castro, outro imortal da Academia presente. Tantos médicos e, sobretudo, tantos cirurgiões da mesma especialidade do anfitrião, Volney, demonstram a personalidade afável que ele é, multiplicando amizades e admirações em todos os campos, do trabalho à profissão à vida em sociedade.

Finalmente, chegam a noiva e os pais, pouco depois  das três, desculpando-se, preocupados: uma barreira despencou na estrada de sua Fazenda Paraíso até a capela, e foi preciso chamarem reforços, escavadeira, empregados, para limpar a passagem totalmente interditada. Ficaram ilhados em casa, até haver uma brecha para o carro.

Paulinha, muito bonita, coberta de rendas francesas guipure, com um véu que se estendia até um terço da passarela central, tule e rendas aplicadas, e um véu sobre o rosto, que o noivo, Fábio Saraiva Monteiro, levantou para lhe dar um beijo. Ohhhhhh, a audiência adorou!

Cerimônia clássica, toque de clarim à entrada da noiva, Marcha Nupcial, uma soprano afinadíssima interpretando a “Ave Maria” e se houvesse cristais eles teriam se partido. Homilia breve, mas tocante, as alianças, o “até que a morte os separe”, as fotos no altar, e todos nos preparamos para partir para o almoço na fazenda…

Eis que um convidado alertou: “A estrada está interrompida, vamos esperar”. Ninguém obedeceu. Lá fomos nós, desafiando barrancos e barreiras, esperando a vez da passagem de cada carro, patinando sobre a lama, e enfim chegando à residência magnífica, onde tudo foi bom, bem servido, gentil, encantador. Dos detalhes da decoração à música ao vivo, do início ao fim. Das delícias preliminares servidas – e bem servidas – ao buffet e às bebidas, que jorravam de interminável fonte de Taitinger.

Foi o casamento com que as noivas sempre sonham: aquele em que os convidados amam ter ido, o noivo fica orgulhoso, e todos os cuidados atestam o amor infinito dos pais por sua filha.

Paula Pitombo, renda de seda guipure francesa

Sonia Regina Vianna Saraiva Monteiro e o filho noivo, Fábio

Virginia Bartolomeo, O anfitrião Pitombo, esta colunista e Karmita Medeiros

André Maranhão e Volney Pitombo

Ghiaroni e Georgia Wortmann

Raul Chamma e Rawlson de Thuin sobre a pista de dança com plotagem de imensos azulejos portugueses

Régis e Priscila Ramos, um dos casais de padrinhos, com o filho, Pietro

Fotos de Cristina Granato

O Dia das Mães é também Dia do Luto

Completam-se hoje três anos do Golpe de 2016. Triste coincidência: no mesmo domingo em que celebramos nossas mães, lamentamos a ruptura institucional, que levou Temer ao poder, subtraindo os direitos dos trabalhadores, enterrando nossa economia, e possibilitando o cataclisma que hoje destrói nossa economia e compromete nosso futuro.

CARTA PARA MINHA MÃE

Minha mãe amada. Sua coragem e seu espírito de luta nos fazem muita falta nesta hora, neste dia. Imagino como a senhora estaria empenhada, batendo de porta em porta, distribuindo santinhos e mensagens, abordando as pessoas nas ruas ou onde quer que estivessem, para repedir a ladainha de seu sofrimento e de nossa tragédia, nos anos da ditadura no Brasil.

Sei o quanto a senhora prezava a democracia, a liberdade de se expressar, de ir, vir e se reunir. De pensar e de estudar. De criar. Tudo que nos foi negado por aqueles anos de escuridão, que também nos negaram as vidas de Stuart, seu filho, meu irmão, de Sônia, sua nora, minha cunhada, e sua própria vida.

Nada mais disso, no entanto, é lembrado e lamentado por grande parte dos brasileiros. Os que não viveram e muitos dos que viveram aquele período assustador. Tenebroso. Nosso país adorado, e que a senhora tanto louvava em suas roupas, se desumanizou. As pessoas não valorizam e prezam a vida como antes. Elas assistem à espetacularização da violência real, pelos noticiários da TV, como assistem aos filmes com psicopatas na programação das noites de segunda-feira.

Tudo passou a ser trivial em nosso país. Decepar, enforcar, asfixiar, estuprar, toda e qualquer forma de violência, as mais perversas, se tornaram trivialidades.

O pensamento solidário, aquele de olhar a todos como irmãos, que Jesus Cristo trouxe à Terra, se extinguiu, também e principalmente, entre os próprios cristãos. De nada adiantam os apelos quase diários do Papa contra o fascismo. Não o escutam. E os que ouvem sua voz, o criticam. Ser caridoso e piedoso é visto como fraqueza e impostura. Cada um recria o cristianismo de acordo com as conveniências pessoais. Até os religiosos de batina.

Olho em minha volta e não vejo pessoas. Não são humanos os que se deixam dominar pelo desprezo ao próximo. Os que aplaudem e uivam ao chamado do ódio, da perversão, da indignidade.

Como se o grupo de torturadores e assassinos daquele tempo nefasto tivesse se replicado e multiplicado em milhões de brasileiros. Todos sedentos por sangue, cada um de arma na mão. Com um fuzil AR-15 pra chamar de seu.

Ligo a televisão e vejo, chocada, um tresloucado invadir uma sinagoga em Pittsburgh e fuzilar inocentes. O atirador gritou “todos os judeus devem morrer!”. Assim como agora gritam “30 mil devem morrer”, e que o estado brasileiro não deve gastar com os pobres, pois eles não servem pra nada, só pra votar.

O massacre foi no país do armamento liberado, os Estados Unidos da América, onde as crianças levam armas aos colégios e dizimam seus colegas de turma. Modismo bárbaro, que vemos, aos poucos, introduzido em nosso Brasil, ainda com pequena frequência, ainda sem as armas liberadas. E serão até para as crianças, esse é o plano.

Tínhamos uns vizinhos de prédio, praticantes de tiro exímios, campeões, que por descuido ou distração deixaram uma arma ao alcance do filho pequeno. E vimos o dia em que chegou a caminhonete fúnebre para levar o corpo do amiguinho, assassinado por disparo involuntário da criança. A família fechou-se em luto e grande sofrimento. Não era esse o seu objetivo, mas foi essa a sua consequência.

Minha mãe, meu desolamento e minha aflição são tão grandes que me fogem a coerência e o raciocínio. Ah, se você estivesse aqui, para se vestir de preto e sair por aí, clamando seu infortúnio, exibindo o desespero da mãe que perde um filho e nada pode fazer. Nem reagir, nem denunciar, nem implorar por seu corpo. Pelo menos isso, nós conquistamos nesses últimos 30 anos, e às custas das mortes de tantos nos 21 anos que os precederam.

Naquele tempo em que sequer se podia chorar os mortos, você foi se juntar a eles, por desobedecer a “ordem de comando” do silêncio geral. Morta por chorar, por implorar e por fazer seu grito repercutir até ser escutado no estrangeiro.

É esse tempo que querem de volta. Movidos pelo temor da violência, votam para institucionalizar essa mesma violência, dando a ela poder de matar a todos, indiscriminadamente, sem processo, sem controle. Com medalha de honra espetada na farda.

Mãe, não tenho a sua capacidade. Tenho procurado fazer o que me é possível, escrever, informar, debater. E sempre chorando muito, pressentindo a tragédia que está prestes a se abater sobre todos nós.

Fui ontem à gruta de São Judas Tadeu. Hoje é aniversário do santo. Acendi uma vela, não pelos meus doentes, pelo Brasil. Ele está mais precisado. Por favor, reze por ele. Quem sabe aí onde está suas preces sejam mais escutadas do que as nossas. Do que as do Papa Francisco.

Te amo, mãe,

Hilde

TEXTO de 2018

Lula, sabiá, rompe a gaiola com seu canto

Fui abduzida por Lula ao ouvi-lo discursar pela primeira vez. Foi numa festa de Réveillon, quase íntima, oferecida por seu vice, José Alencar, num hotel de Brasília, na noite anterior à sua primeira posse no Planalto. De mãos dadas com Alencar, Lula despejou seus sonhos para o Brasil que iriam construir, os projetos, as esperanças. Mergulhei nelas. E no Lula, em quem eu havia votado, não por ele, mas pelo Alencar. Fiquei duplamente orgulhosa do meu voto.

Depois disso, foram muitos pronunciamentos do Lula. Eles já me fizeram rir, gargalhar, me entusiasmar, me indignar, chorar, gritar. Quando ele disse, antes de ser preso, que era uma Ideia, e que todos nós seríamos Lula, lasquei um Hildegard Lula da Silva no Twitter por algumas semanas. E só retirei porque “não ficava bem” a uma jornalista tamanha parcialidade. Mas continuei a lular. Não apenas pelo Lula, pessoa, mas pelo Lula maior que o Lula, o Lula ideia, o Lula entidade, o Lula Hildegard, Pedro, João, Maria, Sebastiana. Sei que Lula não é a perfeição. Tem as falhas de todos nós, talvez mais, talvez menos, mas é maior do que todos em sua genialidade. Lula não é Lula, é Super-Lula, que poderia sair voando da cadeia, se quisesse. E ontem ele demonstrou isso, voou sobre as cabeças da mediocridade nacional e aos olhos extasiados de seus admiradores. Ninguém prende Lula. Uma Ideia não se prende. Lula está um sabiá cantador na gaiola, mas com a chave. Seu canto é sua liberdade.

Ando evitando escrever, porque só escrevo com sentimento e quando acredito. E hoje estou envolta numa bolha de tristezas e decepções, contaminada pela síndrome da deprê nacional, que não tenho conseguido romper. Por isso, não vou me estender. Vou transcrever um artigo de Jeremias Baruch de que gostei, e que diz muito deste meu momento.

Jeremias Baruch

“Eu sempre fui de esquerda mas eu repudiava o Lula. Achava-o falastrão, circense, populista sem sentido. Eu nunca o odiei, mas eu escrevia críticas a ele e à bajulação que faziam dele. Até que eu vi o discurso que ele fez em cadeia nacional, retransmitido pela Globo News, no dia da condução coercitiva, e me sentei boquiaberto pensando “então é disso que eles falam; é esse poder de oratória!”.
Eu percebi que nunca tinha me dedicado a ouvir o Lula, e percebi, envergonhado, que eu havia me deixado contaminar pela falta de crítica do meio em que vivia_ e pelo meu desprezo pela política brasileira. O Lula é um gênio, pensei, ouvindo-o. Que oratória, que eloquência! Naquele momento passei a defendê-lo, o que causou um choque entre todos que me conheciam. Escrevi em meu blog, em uma sentada, assim que acabou seu pronunciamento, um texto chamado “Moral em pareidolia”. As pessoas que me liam, metade delas na época, me xingaram, me chamaram de estúpido, de idiota, disseram que eu tinha ficado louco. Dali para frente eu entendi ainda mais o fenômeno Lula e entendi ainda mais a política brasileira, essa distorção que impõe ao alienado que identifique impossíveis heróis morais para louvar. Vi o Lula como um ser humano, mas um ser humano único. Como Saul Bellow fala sobre os seus, Lula é uma “entidade”, um espírito raro que só ocorre de tempos em tempos. Eu não o louvo, eu não me isentei de criticá-lo, mas agora o faço liberto, sem os grilhões das trombetas de guerra. E que alívio foi ouvi-lo hoje novamente! Eu ainda desprezo os lulistas radicais, que são tão deletérios como os Mijairlistas. Mas o Lula, com toda sua ginga, com toda sua malandragem, com toda sua autoconfiança, é um gênio, do mesmo patamar que um Churchill e um Roosevelt.”

Só cachorro pode procurar osso, as famílias dos mártires brasileiros não


Quando o governo do Brasil impede a busca dos ossos dos desaparecidos políticos, ele evidencia que ainda há muitos mais mortos a serem encontrados. Ninguém melhor para saber quantos eles são, e onde estão, do que aqueles que enterraram os cadáveres.


O presidente, que aprova as torturas e achou poucos os assassinatos na ditadura, é contraditório quando impede a procura dessas ossadas. Afinal, seria a oportunidade, a cada esqueleto achado, de ele demonstrar sua alegria, armar palanque, providenciar salva de tiros, reger banda de música e bater continência para eventuais autoridades estrangeiras.

Festejos sinistros de um dirigente para quem procurar osso é coisa de cachorro e mais 30 mil brasileiros deveriam ter sido eliminados. Hoje haveria mais 30 mil mães sem túmulo para chorar, mais 30 mil famílias à procura dos restos de seus entes amados.

A crueldade pelo menos não impede os cachorros de procurarem os ossos dos seus. Afinal, cachorros são filhos de Deus.

Hildegard Angel

Milionária Maria Geyer doa fardão de Cacá Diegues

Em sua posse, hoje, na Academia Brasileira de Letras, o cineasta Cacá Diegues estará ostentando um precioso fardão sob medida, confeccionado pelo alfaiate Diógenes, seguindo o costume dos demais imortais.

Cacá Diegues na prova do fardão – montagem

É hábito que tal vestuário seja doado pelo estado ou cidade de origem do novo acadêmico. Mas como estados e municípios do país estão todos com a faca no pescoço, coube à milionária Maria Geyer, herdeira do dono da Unipar, Paulo Geyer, o gesto generoso, ao custo de R$ 50 mil. Paulo Geyer foi, ele também, um generoso mecenas, chegando a doar, junto com a mulher, Maria Cecília, toda a fantástica coleção de arte que cobria as paredes, e até os tetos, de sua majestosa casa no Cosme Velho.

DIVAS SOCIAIS SAEM DO FOCO DA MÍDIA, SUCEDIDAS PELO “PADRÃO KARDASHIAN”

As divas sociais partem, uma a uma, e seu mundo se extingue. Divas que eram proclamadas, aduladas e aplaudidas pela mídia e por todos, sem constrangimentos de ambas as partes.

Naquele outro mundo – que agora dá seus últimos suspiros – havia uma tolerância da sociedade menos favorecida para com as diferenças de status e privilégios. Sobretudo na América, onde o conceito do self made man sempre foi cultivado. Ser rico não era uma agressão, era um estímulo. Porém, quando o mundo dos mortais descobriu na pele que a “Meritocracia” era uma fábula de Polichinelo, que o mérito precisa do impulso das oportunidades, e que estas jamais são iguais no universo capitalista, o ressentimento social aflorou.

Kim Kardashian, uma beleza construída

PADRÃO KARDASHIAN

Os ricos da elite, hoje, se preservam, se escondem e isolam em seu pequeno mundo virtual restrito aos que tenham a senha de acesso ao seu Instagram, como um dos “escolhidos”. A retração dessa elite, que detém e exerce os códigos clássicos da vida em sociedade, deu margem a que surgissem as socialites “padrão Kardashian”. A primeira delas, mérito lhe seja dado, foi Paris Hilton, que, em vez de se mostrar humilhada, após ser divulgado na rede um vídeo seu fazendo sexo com o namorado, abraçou a fama e passou a ganhar dinheiro com ela.

RECATO TOTAL

As socialites “’padrão Kardashian” escancaram a casa em reality shows, mostram tudo, inclusive seus nudes, e formam opinião nos costumes, gostos, atitudes, moda. Até no shape do corpo. Elas fizeram da bunda, que tantas se esforçavam por reduzir, um objeto do desejo mundial e do preenchimento artificial. São liberadas e modernas; se casam com rappers e atletas negros; seu pai assumiu sua porção mulher, e se tornou uma; as crianças são superstars desde o berço. Tudo que delas emana se torna produto e faturamento de milhões de dólares. Inclusive as roupas das crianças…

Enquanto isso, a elite dos sobrenomes abre mão de seu protagonismo na mídia, que alcançou o ápice na segunda metade do século XX, e se recolhe ao recato em que vivia no final do XIX.

As irmãs Kardashian, Kim e Kourtney, vestindo Versace

SOCIEDADE MUTANTE

Interessante observar essas transformações em nossa sociedade, processos mutantes, que devem servir de observação e aprendizado. O advento do Facebook causou graves prejuízos às personalidades do Society, que, inebriadas com a autossuficiência que lhe dava o aplicativo, dispensando os colunistas sociais como intermediários, passaram a fazer a crônica deles mesmos. O que motivou uma nada elegante exacerbação de vaidades e egocentrismos. Ostentação de luxos e exageros. Pior: aliada à superexposição de luxos e belezas, veio também a dos erros de português, de interpretação de texto e de posicionamento crítico. Enfim, não foi um período “chic” para a sociedade brasileira.

NOVA ERA

Bem faz nossa elite, que atualmente se recolhe no Instagram e se expõe apenas entre as quatro paredes de seu ambiente social, com a liberdade e a segurança da convivência dos iguais. Um clube privado virtual. Nasce mais uma Nova Era.

A DESPEDIDA DA ELEGANTE IRMÃ PRINCESA DE JACQUELINE KENNEDY ONASSIS

Correta, articulada e elegante, Lee Radziwill, diva do alto mundo, morreu na sexta-feira passada, em casa, na rua 72 East, Nova York, duas semanas antes de fazer 86 anos. Viveu bem, bebeu e fumou até os últimos dias, e já começava a sentir o isolamento próprio da idade, de quem perde os amigos, que se vão primeiro, inclusive sua irmã, Jackie O., quatro anos mais velha.  No último ano, Lee perdeu a mobilidade, mas não capitulou da vida social. Continuava a conviver em almoços e jantares em casa. Lee foi casada com o príncipe Stanislas Radziwill, o que glamourizou ainda mais sua imagem. Mas, a vida foi glamourosa desde sempre, filhas que ela e Jacqueline eram de Janet e John Verner Bouvier III, conhecido como Black Jack Bouvier.

BEM-VINDAS

Mas foi só após a morte do pai, em 1957, e com a fortuna herdada dele, que as irmãs Lee e Jacqueline Bouvier passaram a integrar o mundo do high Society, que conquistaram com o mesmo charme de seu pai e a mesma ambição de sua mãe. Elas não eram propriamente do círculo  WASP, da sociedade de Nova York, mas foram muito bem-vindas nele, pois representavam tudo que todos adoram, classe e juventude. Naquele auge da prosperidade do pós-Guerra, houve uma abertura para novos nomes sociais.

UM NOVO TEMPO

Para sua geração, as Bouvier foram “as irmãs que se casaram bem”. Porém, a fama lhes chegou foi com a ascensão de Kennedy a presidente. No período Kennedy, as irmãs personificaram o surgimento de um novo tempo. Quando os da chamada alta sociedade se tornaram celebridades da mídia.

Lee Radziwill em seu apartamento de Nova York

SÓ PARA CONVIDADOS

Foi “para convidados only” a missa de morte de Lee Radziwil, a princesa irmã caçula de Jacqueline Bouvier Kennedy Onassis. Às 10 da manhã de segunda-feira, na Igreja de São Thomas More, em Manhattan, East, 89th Street. Eram cerca de 300 pessoas, inclusive sua sobrinha, Caroline Kennedy Schlossberg, a socialite Deeda Blair e os nomes da moda Marc Jacobs e Carolina Herrera, com Reinaldo. Os eventos fúnebres nos Estados Unidos são umm acontecimento. E quando são nomes dourados, é um festival de limousines na porta da Igreja e um desfile de elegância, com mulheres e homens de preto, elas com meias de nylon escuras e chapéu negro. Quando também não calçam luvas, como nos filmes de antigamente

No roteiro musical da miss de Lee, Coro e a Orquestra da Catedral do Divino São João, regidos por Ken Tritle, o organista David Briggs e a soprano Suzanna Philips, interpretando Puccini – “Música sem palavras”, a preferida de Lee para dormir – Bach, Brahms e Faure.

Sofia Coppola leu a primeira leitura, o Livro da Sabedoria – “as almas dos justos estão nas mãos de Deus, e nenhum tormento as tocará”. A filha de Lee, Tina, leu EE Cummings. Um amigo fez o Elogio à Lee. Em seguida, o coro e a soprano cantaram Amazing Grace. Havia enormes arranjos de flores rosa, verdes e brancas. Um convidado disse: “quando saímos da igreja, o Sol explodiu por trás das nuvens como se a própria Lee tivesse ordenado seu calor e brilho para que completássemos o dia.”

Lee Radziwill era protagonista. E o show da sociedade repete o enredo do show business, em que protagonista gosta de conviver apenas com protagonistas. Entre os poucos amigos ou conhecidos brasileiros da irmã de Jacqueline Kennedy, estavam o empresário brasileiro André Jordan, com quem o marido príncipe de Lee trabalhou no lançamento de um de seus resorts em Portugal; Lourdes Catão, no período em que viveu em Nova York; a empresária Vivi Nabuco; e os saudosos Jua e Fernanda Hafers, que recebiam o grande mundo social americano em casa, em Park Avenue, NY.

As divas sociais da geração de Lee Radziwill partem, levando tudo o que aprendemos a admirar e a acreditar, em se tratando de elegância, inspiração, bom gosto e refinamento.