Palestra realizada por esta jornalista, por ocasião do II Seminário Moda Uma Abordagem Museológica, realizado pela Casa de Rui Barbosa e o Instituto Zuzu Angel, no dia 23 de maio de 2019
O acervo da Casa Zuzu Angel se divide em cinco grupos:
1 – A Coleção Zuzu Angel, da criadora pioneira em suas propostas da moda com brasilidade e da moda como instrumento de denúncia e protesto político.
Grupo 2 – Mosaico da Vida Brasileira, que reúne várias peças, de criadores brasileiros e estrangeiros, usadas por diferentes personalidades, de setores e extratos sociais diversos, abrangendo dos anos 40 aos dias de hoje. Aí temos vestuário desde as Cantoras do Rádio, Marlene, Emilinha, a Cauby Peixoto, a Adelaide Chiozzo do acordeon, ao velho guerreiro Chacrinha, roupas do vice-presidente José Alencar, das meias de fio metalizado de dona Neusa Brizola ao smoking de posse de Ivo Pitanguy na Academia Nacional de Medicina.
3 – Grupo de marcas e criadores brasileiros, com as coleções de Isabela Capeto, Glorinha Paranaguá, Luís de Freitas, Marco Ricca, Lucília Lopes, Heckel Verri, Glorinha Pires Rebello, Guilherme Guimarães, José Ronaldo, Moda Rio etc.
4 – Os Colunáveis, no qual se destacam Coleção Monteiro de Carvalho, Coleção Paulo Fernando Marcondes Ferraz, Coleção Tereza Chateaubriand Alkmin, Coleção Severiano Ribeiro, Coleção Martha Rocha, Coleção Ibrahim Sued, a estrela deste grupo é a Coleção Carmen Therezinha Solbiati Mayrink Veiga, que vamos focalizar.
Iniciamos o acervo que hoje ocupa a Casa quando vimos a necessidade de resgatar as criações de Zuzu Angel ainda existentes e reuni-las numa Coleção, preservando a obra que julgamos importante, assim como a coletividade da moda também a considera. Essa ação de garimpo nos levou à percepção da pouca ou nenhuma importância atribuída à moda no Brasil àquela época, primórdios dos anos 90, quando não era vista como expressão de arte e bem cultural… e hoje começa a ser. Começa.
Verdadeiras preciosidades se perdiam nos brechós e nas reformas domésticas singelas, que descaracterizavam a criação, para seu reaproveitamento por outras pessoas ou sua adequação aos padrões de cada época, quando as roupas eram ora curtas ora longas, ora largas ora estreitas, ora fechadas ora decotadas, motivando infinitas adaptações.
Assim, nesse processo de garimpo das peças de Zuzu, produzidas desde a década de 50, percebemos a necessidade de captar e preservar também a obra de outros artistas brasileiros.
Nesse processo, passamos a receber também doações de peças de alta costura e de pret-à-porter de importantes marcas estrangeiras, como Christian Dior, Balenciaga, Pierre Cardin. Culminando com a fantástica doação de Carmen Mayrink Veiga, até a aquisição de um vestido de baile da princesa obra da inglesa Catherine Walker, sua preferida para roupas de gala.
Nossa responsabilidade tornou-se maior, e nossa necessidade de espaço também. Por diversas vezes tentamos parcerias com o poder público na busca de um imóvel para o Museu da Moda. Foram acordos, negociações, promessas e decepções, em vários níveis governamentais, desde os anos 90.
Até que decidimos, há quatro anos, ceder uma casa pertencente à família de Zuzu Angel, isto é, de minha propriedade, uma residência apalacetada que data do século 19, na Usina da Tijuca, e lá estabelecemos a Casa Zuzu Angel, numa parceria inicial de um ano com o Banco Itaú e a Light.
Tal parceria nos possibilitou colocar no ar o Portal da Coleção Zuzu Angel, montar quatro reservas técnicas, sendo três reservas têxteis e uma reserva documental, e realizar a conservação da Coleção Zuzu Angel. Tudo de acordo com padrões museológicos internacionais, controle de umidade, temperatura, iluminação, fungos, isolamento contra insetos.
Os trabalhos hoje se expandem pela casa inteira. Temos três salas de exposição, uma sala reservada para a remontagem do quarto de Zuzu Angel, duas salas de conservação, biblioteca, além de três outras salas de guarda de acervo têxtil, chamadas de Salas de Quarentena. É onde vem sendo feito um inventário minucioso de todas as peças ainda não catalogadas, que, devido ao nosso desconhecimento inicial, obedeceram a diferentes métodos de organização ou à ausência de métodos, o que enfim conseguimos normatizar.
Temos um cronograma a cumprir de seis meses, para deixar todo o acervo de cerca de seis mil peças em ordem. Para isso contamos agora com o museólogo Rubens Ramos, nosso colaborador de primeira hora, que como bom filho à casa retorna depois de um período no Museu da Imagem e do Som de São Paulo.
Começamos aprendendo e continuamos a aprender. Nossa primeira providência foi estabelecer uma parceria com o Musée de La Mode, Palais Galliera, em Paris, onde tivemos uma arquiteta estagiando, pelo período de oito meses, enviada por nós, com auxílio do Consulado da França no Rio e apoio da Air France. Como consequência, a arquiteta Paula Kierulf produziu um dossiê precioso, bem ilustrado e detalhado, que auxiliou a arquiteta Luisa Bogossian no processo de adaptação dos espaços, na montagem de nossas reservas técnicas e na aquisição de materiais. Para isso, contou a criatividade e o espírito de improviso dos profissionais do Estúdio Guanabara, adaptando mesas de conservação, recriando luminárias e arquivos, atendendo aos nossos recursos sempre limitados. Hoje providos pessoalmente por mim – pessoa física.
A Coleção Carmen Mayrink Veiga foi outro desafio enfrentado por nossa conservadora Manon Salles, e é comovente ver o que ela conseguiu realizar com suas assistentes, e posteriormente com as estagiárias da Unirio e da UFRJ.
A Coleção Carmen Mayrink Veiga é preciosa, pois reflete a profunda sensibilidade para a alta moda e o bom gosto da consumidora e colecionadora, o que é reconhecido inclusive internacionalmente, tendo sido incluída no Hall of Fame da Eleição das Mais Bem Vestidas do Mundo, que anualmente podemos conferir na revista norte americana Vanity Fair.
São quase 200 roupas cuidadosamente escolhidas e pinçadas por ela, que relata em manuscritos a história de cada peça. Isso pudemos conferir por ocasião da Exposição Carmen Mayrink Veiga, que ocupou todos os espaços da Casa Julieta de Serpa, no ano de sua fundação, em 2003.
Com uma linda direção de arte do cenógrafo Colmar Diniz e nossa concepção e curadoria, a exposição de moda abrangeu as várias faces de Carmen, suas coleções de arte, seus álbuns de festas, suas joias, as viagens, sua presença na mídia.
Havia uma sala particularmente original, que era o Instituto Médico Legal da Moda. Toda branca, simulando azulejos, a sala era um laboratório de pesquisa, onde, numa grande mesa, repousavam tailleurs e vestidos preciosos da colecionadora Carmen, de modelagem elaborada, todos de alta costura. Eles eram virados pelo avesso, para que os visitantes tivessem um acesso único aos “bastidores” da roupa e fizessem sua autópsia. Para que conhecessem segredos e truques, praticamente inacessíveis aos comuns mortais, da alta moda, em que os preços podem alcançar centenas de milhares de dólares.
Eram fornecidas a todos luvas para manipulação das peças, e em alguns casos pinças.
Tivemos a alegria de alguns anos depois ver uma exposição no Victoria and Albert Museum, em Londres, repetir essa ideia, relatada por nós a um dos diretores daquele museu quando esteve no Rio de Janeiro.
Nossa caminhada nos fez ver que, para lidar com um acervo de moda, não basta deter os conhecimentos teórico de catalogação, conservação, restauração, acessíveis em poucos cursos de escolas brasileiras.
Não basta sequer o dinheiro, que sempre nos falta. É preciso dominar um saber que só um centro de pesquisa, como é a Casa Zuzu Angel, pode proporcionar, e sob a orientação daqueles que viveram o universo dos grandes ateliês de alta costura.
É o conhecimento de um perito da moda que permite identificar, a partir de sua prática acumulada, com um único olhar, um toque, a idade da peça, sua origem, seu criador. Poucos são os que reconhecem um forro de benberg, tecido usualmente utilizado para isso nas décadas de 50 e 60, um fecho éclair Corrente de metal e algodão e não os de silicone, a partir da década de 70. Os ganchos forrados de seda ou com linha. As bretelles, que impedem a roupa de correr nos ombros. Uma bainha feita à mão ou à máquina, alinhada ou torta. Uma costura reta ou franzida. Botões de osso, madrepérola, baquelita ou plástico. Identificar um plissado montado a mão, milimetricamente, preguinha por preguinha. As contas de cristal de um bordado, e a delicadeza dos pontos minúsculos à mão. Identificar o criador pelo estilo, o corte da roupa, a estrutura da forma.
Essas pessoas são os antigos profissionais, as antigas consumidoras que amam a moda, criaturas como eu, que desde criança perambulei entre alfinetes e fiapos das oficinas de costura de minha mãe ou especialistas internacionais convidados para participar, transferindo conhecimento e tecnologia nos vários saberes que envolvem um acervo de moda.
Conhecimentos que, em nosso país, se tornam preciosos, se pretendermos levar avante o projeto de preservar as obras de arte da moda.
A criação do Instituto Zuzu Angel e da Casa Zuzu Angel é uma longa e até penosa trajetória, que se destinou a fazer uma convergência dessa experiência a outros profissionais, e juntos estamos construindo, acredito, um novo momento para a memória da moda no Brasil.
A Casa Zuzu Angel, além de ser depositária, preservadora e expositora de moda, tem a missão de servir de laboratório de pesquisa e de educação continuada.
Além dos brasileiros, reunimos criações dos estrangeiros renomados. Do tempo em que a moda não era fast fashion descartável, desatenta à qualidade e aos detalhes. Era uma slow fashion, produzida com vagar, cada peça exigindo pelo menos três ou quatro provas, quando não se tratava de um vestido do saudoso Jerson, o brasileiro rei dos drapeados, que obrigava a clientela a pelo menos 7 a 8 provas diante do espelho.
Moda praticamente perene, master pieces dignos de museus, legados para a história.
Assim é a Coleção Carmen Mayrink Veiga, onde pontificam o que de melhor produziram Valentino, Saint Laurent, Givenchy, Ungaro, Mme. Grès e outros preferidos dela.